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Blog - Ale Toledo

Continuidade e desapego na obra "Repetir para incorporar" de laura conti

O texto a seguir é parte integrante de uma série de quatro reflexões que compõem o projeto "Poéticas da Alma", ação cultural apoiada pela Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022), por meio do EDITAL DE CHAMAMENTO PÚBLICO Nº 03/2023 - CONCESSÃO DE BOLSAS - LEI PAULO GUSTAVO  da Superintendência Municipal de Cultura de Pouso Alegre/MG.


Tudo se repete. Nada é igual


Já escrevi vários textos na vida, entre escola, cursos, cursinho, faculdade. Textos que tinham um propósito específico ou textos sem nenhum propósito. Foram várias as vezes que coloquei a caneta no papel ou passeei meus dedos por um teclado para ali materializar algo que existia apenas na minha subjetividade e que, no momento exato que passava para a folha/tela tornava-se vivo no mundo. Foram várias vezes e, insisto em reescrever “várias”, para enfatizar essa repetição que acontece desde muito novinho mesmo.


Mas ainda assim, fiquei aqui parado na frente da tela pensando: como eu começo esse texto? Não sabia qual seria a melhor maneira de começar a estruturar esse pensamento que quero explorar aqui. É como se todos os textos já escritos previamente me preparassem para esse momento (porque me alfabetizaram, me possibilitaram aprender a conectar ideias, a me expressar de forma escrita, etc.), mas esse texto aqui é único. Nunca foi escrito. Não é e não será igual a nenhum outro. E esse é um ótimo gancho para começar a exploração sobre a repetição.


Repetir para incorporar



"Repetir para incorporar" é o nome da performance realizada pela multiartista laura conti (grafado em minúsculo pela própria artista), em que o conceito de repetição assume um papel central e simbólico. Durante a performance, que tem como cenário um horto florestal com um lago ao fundo, onde patos passeiam tranquilamente, laura utiliza um carimbo de madeira gravado com a palavra “corpo” e tinta vermelha sobre um grande tecido de algodão cru.


A artista, em um processo meticuloso, carimba repetidamente a palavra “corpo” ao longo de todo o tecido. A cada nova aplicação, ela recarrega o carimbo com tinta, renovando o gesto com paciência e precisão. No final, com o tecido completamente preenchido pelas marcas vermelhas, laura usa o próprio dedo como pincel e, com tinta marrom, escreve no centro do tecido a frase "Repetir para incorporar". A obra final se transforma em uma bandeira, materializando o conceito de repetição como um ato de incorporação e presença.


Existem vários recursos simbólicos que podemos destacar nesse processo criativo de materialização da performance descrita acima, aproximando-os de reflexões encontradas em textos antigos sobre a filosofia do yoga. Essa é uma maneira interessante de evidenciar como as tradições espirituais, em especial aquelas oriundas do oriente, refletem em seu pensamento aquilo que a arte transmite em suas diversas formas de expressão.


Yoga Sutra de Patanjali


O Yoga Sutra de Patanjali é um texto que assume um papel bastante importante e presente em muitas tradições de yoga. Em linhas gerais, o autor apresenta um tratado sobre a mente humana, explicando seu funcionamento, as qualidades mentais e seus movimentos e propõe um caminho para alcançar um estado mental pacífico, no qual há ausência de conflitos, denominado como nirodhah.


No sutra 12 do primeiro capítulo o autor afirma que tal estado mental de nirodhah é alcançado por uma prática repetida (constante) e desapego:



abhyāsavairāgyābhyāṃ tannirodhaḥ || 1.12 ||

Nirodhah surge da prática repetitiva e do desapego



Meu intuito aqui não é trazer termos específicos que fazem parte de uma tradição cultural diferente da nossa, mas apenas referenciar a fonte e apresentar dois conceitos que servirão de base para as reflexões. Esses termos são: Abhyasa (repetição, prática contínua) e Vairagya (desapego).


Abhyasa e Vairagya – Repetição e Desapego


Abhyasa é uma palavra em sânscrito que se refere ao processo contínuo de prática. Muitos a traduzem como “prática repetida,” mas sua essência vai além disso. Abhyasa carrega em si uma sabedoria que lembra a famosa expressão “a prática leva à perfeição.” No entanto, eu diria que a prática repetida não necessariamente nos conduz à perfeição, mas sim ao aprofundamento.


Perfeição é um conceito idealizado, distante da realidade concreta. Já o aprofundamento está ancorado na realidade, no processo de absorção e integração do conhecimento. Em vez de buscar uma perfeição inatingível, Abhyasa nos convida a nos dedicarmos a uma prática contínua, que aprofunda nosso entendimento e nos transforma.


Pense em aprender a tocar um instrumento. É necessário um compromisso diário: você aprende uma escala e a repete inúmeras vezes, estuda uma música e a toca repetidamente, absorve um novo conceito e o pratica continuamente. Esse ciclo de repetição não tem um fim definitivo; é um processo que dura a vida inteira. Com o tempo, cada repetição aprofunda seu domínio sobre o instrumento, tornando-o uma extensão de si mesmo.


Abhyasa é exatamente isso: um envolvimento constante com uma prática que nos leva a uma compreensão mais profunda de nós mesmos e do mundo ao nosso redor. Ao praticar repetidamente, não estamos apenas aprimorando nossas habilidades, mas mergulhando mais fundo no verdadeiro conhecimento.


No sutra apresentado por Patanjali, há também o termo Vairagya, que se traduz como desapego. Embora à primeira vista possa parecer um conceito separado, Vairagya está profundamente entrelaçado com Abhyasa. Afinal, como continuar em movimento sem se desprender do que ficou para trás?


Desapego aqui não é sinônimo de apatia ou indiferença. Pelo contrário, é uma atitude consciente de reconhecimento do passado como parte essencial do caminho. É entender que cada experiência vivida pavimenta a estrada para nossos próximos passos. Honramos e agradecemos esse passado, mas não nos prendemos a ele; seguimos em frente, de coração aberto.


Uma maneira simples de visualizar isso é pensar no ato de caminhar. Caminhar é, por excelência, uma prática de repetição—uma prática de Abhyasa, mas para dar um novo passo, é preciso tirar o pé de trás do chão. É somente através do desapego, do deixar ir, que conseguimos dar o próximo passo e avançar na jornada.


Vairagya, então, é esse equilíbrio sutil: seguir o caminho com dedicação, mas sempre com a leveza de quem sabe desapegar do que já passou e das expectativas do que ainda está por vir. É o desapego que nos liberta para caminhar com mais presença e autenticidade.


A obra


A obra “Repetir para incorporar” de laura conti pode ser analisada através dos conceitos de Abhyasa e Vairagya, termos que expressam ideias profundas dentro da filosofia do yoga.


Começando por Abhyasa, a prática repetida como forma de aprofundamento. A performance de laura gira em torno da repetição: o ato contínuo de carimbar a palavra “corpo” no tecido de algodão cru. A cada novo carimbo, a artista imprime a palavra sequencialmente, preenchendo o tecido e, aos poucos, dando forma à bandeira. A repetição também transparece em seu ato coreográfico. “Corpo” não é apenas uma palavra impressa no tecido, mas é a figura principal da performance. Debruçada sobre a bandeira, a artista faz uso de todo seu corpo para manifestação de sua expressão artística. A cena dessa repetição nos remete a ideia de um processo quase devocional, de uma entrega total da artista à sua criação.


Entretanto, algo se torna evidente: a repetição, ao invés de ser monótona, revela uma unicidade em cada ato. Nenhum carimbo é exatamente igual ao outro. Alguns traços saem mais carregados de tinta, outros aparecem ligeiramente mais claros. Há respingos, desvios de alinhamento, e pequenas divergências que tornam cada impressão única.


Uma pequena frase da sabedoria zen resume bem essa ideia. Ela diz que uma pessoa não pode entrar no mesmo rio duas vezes, pois ao retornar ao rio, suas águas já são outras e a pessoa também se modificou. Mesmo que você já vá um rio diariamente, por anos seguidos, cada dia será único e novo, a repetição nos fala sobre a cena ou sobre a coreografia da vida, mas cada momento guarda em si a característica da unicidade. E é nesse aparente paradoxo entre repetição e unicidade que a bandeira vai tomando forma durante a performance.


Mas o processo só é repetitivo porque nele existe desapego (Vairagya). Se cada impressão guarda em si a característica de ser única, nela pode surgir duas possibilidades de apego. A primeira se apresenta na “imperfeição”, ou seja, se a impressão deixada pelo carimbo no tecido não fica do jeito que a artista imaginava, ela pode querer corrigir, tentar “consertar” o erro, ou mesmo abandonar sua bandeira e começar uma nova na qual o erro não apareça. Isso a impediria o processo de continuar de forma fluida.


A segunda possibilidade se apresenta em seu oposto, a “perfeição”. Nesse cenário, caso a impressão tenha ficado exatamente como a artista idealizou, pode surgir um receio de que a próxima impressão não fique tão boa quanto essa última e um impulso de resistência a impede de continuar de forma livre. Ela fica tomada de uma vigilância exagerada para garantir que cada nova impressão seja tão "perfeita" quanto a anterior.


Tanto a busca por corrigir imperfeições quanto o medo de não alcançar a perfeição podem criar um apego paralisante, impossibilitando o avanço natural da obra. Imperfeição e perfeição são, em última análise, fantasias que nascem da comparação com um ideal abstrato. Prender-se a essas ideias impede a continuidade orgânica do processo criativo.


É aqui que o processo de laura conti converge com o conceito de Vairagya, pois ela permite que sua performance siga um fluxo contínuo e livre, sem se apegar ao que já foi feito ou ao que está por vir. Ela se entrega à prática repetitiva com um coração aberto, permitindo que a obra se revele em seu próprio tempo e de forma autêntica.


A vida é fluxo


A performance “Repetir para incorporar” é uma boa metáfora quando comparada ao próprio fluxo da vida que se estabelece em repetições como as do dia e da noite, a alternância das estações, o ciclo de nascimento e morte, o ciclo nas águas que se renovam nos lagos e rios em forma de chuva, as folhas de uma árvore que caem e tornam a reaparecer, e centenas de milhares de outras repetições que se expressam na natureza.


E ainda que sejam repetidas, guardam em si a singularidade de serem únicas e portando preciosas. Não há nenhum verão igual ao outro. Nenhuma folha é exatamente igual a sua precedente. E assim a vida vai sendo tecida, como na composição da bandeira de laura conti; repetidamente, em fluxo constante, e em uma beleza única. Ao nos desapegarmos do desejo de controlar resultados desse fluxo ou evitar erros, permitimos que a vida nos guie de forma fluida, abrindo espaço para a autenticidade e a transformação contínua.

 
 
 

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